Imagine a seguinte situação: Você compra um alimento industrializado e, após abrir a embalagem, encontra um inseto, um pedaço de material estranho ou qualquer outra contaminação que, notoriamente, não deveria estar ali. Automaticamente, surge a dúvida: Será que, pelo simples fato de ter encontrado o corpo estranho, mesmo sem ter ingerido o produto, é o suficiente para a caracterização dos danos morais?
A resposta, conforme o entendimento majoritário e consolidado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aponta para a possibilidade de reparação.
Mas antes de analisarmos a jurisprudência sobre o tema, é necessário levarmos em conta, que “Cerca de 420 mil pessoas – um terço delas menores de cinco anos – morrem por ano no mundo por causa de doenças transmitidas por alimentos insalubres, segundo o primeiro estudo sobre este tema elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).” GLOBO RURAL. Cerca de 420 mil pessoas morrem todo ano por ingerir alimentos não saudáveis. Globo.com, 12 dez. 2015. Disponível em: https://globorural.globo.com/Noticias/noticia/2015/12/cerca-de-420-mil-pessoas-morrem-todo-ano-por-ingerir-alimentos-nao-saudaveis.html. Acesso em: 25 nov. 2025.
O Dano Moral pela Exposição ao Risco
A jurisprudência atual do STJ pacificou a tese de que a mera exposição do consumidor ao potencial risco à saúde e à segurança alimentar pela aquisição de um produto defeituoso pode configurar o dano moral, mesmo quando não há o consumo do alimento contaminado.
Neste cenário, a tese prevalente considera que o dano moral é in re ipsa (presumido). Isso significa que a ofensa decorre da própria violação do direito fundamental à alimentação adequada e segura, sendo desnecessária a prova de dor ou sofrimento específico. O defeito do produto — a contaminação por corpo estranho — gera uma insegurança alimentar desarrazoada que, por si só, viola a legítima expectativa e a confiança do consumidor.
Contudo, é crucial destacar que, como em todo processo judicial, o julgamento final dependerá da análise do conjunto probatório pelo magistrado. É essencial que o consumidor apresente provas robustas do fato, como o cupom fiscal e fotografias do produto lacrado e do corpo estranho, para que o juiz possa formar sua convicção e, eventualmente, acatar o pedido de indenização.
Ingestão: Fator de Ponderação no Valor da Indenização
Nos casos em que o consumidor chega a ingerir, mesmo que parcialmente, o alimento contaminado, isso configura um dano ainda mais grave. A ingestão é uma variável utilizada pelo julgador na definição do quantum indenizatório, de sorte que o valor do dano moral será proporcionalmente maior na medida da lesividade da conduta do fornecedor em face do consumidor.
Em resumo: a não ingestão não impede o pedido de indenização conforme a tese dominante do STJ, mas a ingestão é um fator que, comprovado o dano, pode aumentar o valor compensatório concedido.
Jurisprudência Dominante do STJ e a Caracterização Dos Danos Morais
O entendimento mais recente e definitivo do STJ está consolidado na seguinte decisão:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. AQUISIÇÃO DE ALIMENTO (PACOTE DE ARROZ) COM CORPO ESTRANHO (CONGLOMERADO DE FUNGOS, INSETOS E ÁCAROS) EM SEU INTERIOR. EXPOSIÇÃO DO CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE E INCOLUMIDADE FÍSICA E PSICUICA. FATO DO PRODUTO. INSEGURANÇA ALIMENTAR. EXISTÊNCIA DE DANO MORAL MESMO QUE NÃO INGERIDO O PRODUTO.
[…]
10. É irrelevante, para fins de caracterização do dano moral, a efetiva ingestão do corpo estranho pelo consumidor, haja vista que, invariavelmente, estará presente a potencialidade lesiva decorrente da aquisição do produto contaminado.
11. Essa distinção entre as hipóteses de ingestão ou não do alimento insalubre pelo consumidor, bem como da deglutição do próprio corpo estranho, para além da hipótese de efetivo comprometimento de sua saúde, é de inegável relevância no momento da quantificação da indenização, não surtindo efeitos, todavia, no que tange à caracterização, a priori, do dano moral.
12. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 1.899.304/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 25/8/2021, DJe de 4/10/2021.)
⚖️ Conclusão: A Proteção do Consumidor e a Segurança Alimentar
A decisão do STJ no REsp 1.899.304/SP representa um marco essencial na proteção do consumidor brasileiro. Ao estabelecer que a mera aquisição de um produto impróprio para consumo, contendo corpo estranho, configura o dano moral in re ipsa, o Tribunal Superior reforçou o peso do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e o dever de segurança imposto ao fornecedor pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Essa tese desloca o foco do sofrimento físico (a ingestão) para a violação da confiança e a exposição ao risco. O consumidor, ao adquirir um alimento industrializado e lacrado, possui a legítima expectativa de que ele é seguro e próprio para o consumo. A quebra dessa expectativa, com a revelação da contaminação, é o que ofende a dignidade e a incolumidade psíquica do indivíduo, justificando a indenização.
Na prática, o que isso significa? Para o consumidor, significa que a ausência de sintomas físicos decorrentes da ingestão não é um impeditivo para buscar a reparação. Para o fornecedor, a decisão serve como uma advertência robusta sobre a necessidade de aprimorar os padrões de qualidade e controle em toda a cadeia de produção, sob pena de responsabilização objetiva (independente de culpa). Assim, a jurisprudência não apenas repara um dano individual, mas também cumpre seu papel pedagógico e punitivo, incentivando a segurança alimentar em larga escala.
Referências
- GLOBO RURAL. Cerca de 420 mil pessoas morrem todo ano por ingerir alimentos não saudáveis. Globo.com, 12 dez. 2015. Disponível em: https://globorural.globo.com/Noticias/noticia/2015/12/cerca-de-420-mil-pessoas-morrem-todo-ano-por-ingerir-alimentos-nao-saudaveis.html. Acesso em: 25 nov. 2025.
- (REsp n. 1.899.304/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 25/8/2021, DJe de 4/10/2021.)
- CRÉDITO DA IMAGEM: Foto de Scot Nelson. Disponível em: Wikimedia Commons (Licença CC0).
